Todo mundo já viu ou ouviu casos onde pessoas emigram por desejo próprio ou simplesmente porque foram obrigadas a emigrar.
No final de 2019, a ACNUR (Agência das Nações Unidas para os Refugiados) constatou que mais de 79,5 milhões de pessoas foram deslocadas a força.
Seja por vontade própria ou não, os migrantes podem sentir-se como dizia Gelman — uma “planta monstruosa”, com raízes a milhares de quilômetros de distância do caule e das folhas. E sempre haverá circunstâncias, na chegada ao seu destino, que reduzirão ou agravarão essa situação. Tudo isso, sem dúvidas, traz repercussões sobre a saúde mental.
Síndrome de Ulisses – A fronteira entre saúde mental e o transtorno.
O psiquiatra espanhol Joseba Achotegui é secretário da Associação Mundial de Psiquiatria e trabalha com temas relacionados à migração. Ele começou a observar certas mudanças em 2002.
“As fronteiras foram fechadas, foram criadas políticas mais rígidas contra a migração, as pessoas deixaram de ter acesso a documentos e havia uma enorme luta pela sobrevivência”, contou ele à BBC News Mundo o serviço de notícias em espanhol da BBC.
Essa nova situação trouxe reflexos na forma como chegavam os pacientes para consultá-lo. “Estavam indefesos, assustados, não conseguiam seguir adiante”, segundo ele.
Concretamente, ele observou que muitos migrantes que passam por situações difíceis apresentavam “um quadro de reação de estresse muito intenso, crônico e múltiplo”. Achotegui deu a esse quadro o nome de “síndrome de Ulisses”.
O psiquiatra esclarece que não se trata de uma patologia, já que “o estresse e o luto são normais na vida”, mas salienta a peculiaridade da síndrome que deixa o migrante, novamente, em uma fronteira não geográfica, mas psicológica, entre a saúde mental e o transtorno.
Luto migratório X Síndrome de Ulisses
O termo “luto” nos remete muito a uma perda por morte, porém os psicólogos se referem a esse termo tudo aquilo que envolve perdas, como relacionamentos, a saída de um trabalho, mudanças no corpo, dentre muitas outras situações ao qual se tem uma perda significativa.
“Cada vez que experimentamos uma perda, precisamos nos acostumar a viver sem o que tínhamos e adaptar-nos à nova situação. Ou seja, é preciso trabalhar o luto”, explica a psicóloga espanhola Celia Arroyo, especialista em luto migratório.
Assim, o luto migratório está associado a essa grande mudança na vida de uma pessoa. Mas tem características que o tornam especial, já que é um luto “parcial, recorrente e múltiplo”. Parcial porque não é uma perda total, como ocorre com a morte de alguém; recorrente porque, como em qualquer viagem, pode ser reaberto com a comunicação com o país ou simplesmente olhando uma fotografia no Instagram; e múltiplo, porque não é só uma coisa que se perde, mas muitas.
Essas perdas foram marcadas em sete categorias pelos psicólogos.
A mais evidente costuma ser a perda da família e dos entes queridos. Existe também a perda de status social algo que, segundo Arroyo, costuma ocorrer com a condição de migrante, mas se, além disso, “o país for xenófobo, surge uma grande adversidade”.Outro luto para o migrante é o da perda da terra: sentir falta, por exemplo, de uma paisagem montanhosa ou dos dias cheios de sol.
Soma-se ainda o luto do idioma, que será mais forte nos casos de migração para um país onde se fala outra língua. Pode ser uma forte barreira, por exemplo, para trâmites burocráticos ou para mandar um simples correio eletrônico.
Existe também a perda dos códigos culturais. Ela pode representar algo simples como não ter com quem dançar uma música típica ou tomar uma bebida local do país de origem.E, associada a essa perda, encontra-se a perda de contato com o grupo de pertencimento àqueles com quem podemos falar nos mesmos códigos, que entenderão as nossas gírias e a forma de ver a vida.
A síndrome de Ulisses ocorre quando, além de precisar passar por estes lutos normais, o migrante enfrenta condições difíceis, segundo explica Achotegui.
Condições difíceis essas que envolvem: Rejeição na sociedade onde o migrante está instalado; Insegurança devido à instabilidade de emprego; Não ter apoio emocional; Solidão; Sensação de não pertencimento, dentre diversas outras condições.
Às vezes, pode-se pensar que “o pior” já passou ao cruzar a fronteira em más condições. Mas, no país de acolhida, a sensação de estar indefeso, sem direitos e os possíveis abusos trabalhistas e sexuais podem dar lugar a um quarto fator desencadeante: o medo.
Os especialistas consultados acrescentam que esta situação de vulnerabilidade pode ocasionar a síndrome de Ulisses, principalmente entre as mulheres.
Sintomas da Síndrome de Ulisses
Achotegui esclarece que os sintomas podem ser os mesmos de quando passamos por uma época ruim: dormir mal, dificuldade para relaxar, dores musculares ou de cabeça, tédio, nervosismo e tristeza.
Fauce destaca que, por um lado, o migrante pode entrar em uma espécie de estado depressivo e de tristeza, recolhendo-se em si mesmo, e, por outro lado, pode ficar hiperativo e ansioso, o que acaba consumindo muito de sua energia.
Esses sintomas podem fazer com que a síndrome de Ulisses seja confundida com outras doenças mentais e emocionais, como a depressão ou o estresse pós-traumático, e termine sendo medicada. Mas, neste caso, quando os obstáculos que deram origem à síndrome são solucionados (disponibilidade de trabalho, certa estabilidade, menos estresse etc.), a síndrome desaparece.
“Se o migrante segue em frente, consegue trabalho e atinge uma certa estabilidade, mas os sintomas continuam, existe aí algo mais a ser avaliado e é preciso intervir de outra forma, porque pode ser que haja outra coisa já no plano psiquiátrico, como um quadro depressivo”, explica Achotegui. Por isso, quando o mal-estar se tornar permanente ou nos impedir de levar a vida adiante, é preciso soar o alarme.
Outros sinais de alerta destacados por Fauce são eventuais acessos de raiva, prejuízo às relações sociais ou “a tomada de atalhos, como o consumo de drogas ou álcool, gastos exorbitantes ou esportes de risco”.
Fonte: BCC